Por: João Batista Costa – Advogado e Consultor Jurídico da UVESP – União dos Vereadores do Estado de São Paulo
Introdução
A competência dos Tribunais de Contas para a adoção de medidas cautelares, inclusive antes da oitiva dos interessados, encontra sólido amparo na interpretação sistemática e teleológica da Constituição Federal, bem como no desenvolvimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF) e na teoria dos “poderes implícitos”. Ainda que o artigo 71 da CF/1988 não traga previsão expressa sobre a concessão de cautelares, o entendimento consolidado na jurisprudência é o de que cabe às Cortes de Contas atuar de forma preventiva, suspendendo atos e pagamentos potencialmente lesivos ao erário, garantindo a proteção do patrimônio público e a efetividade do controle externo.
A leitura integrada dos artigos 70 e 71 da Constituição Federal, associada ao artigo 75 (que estende aos Tribunais de Contas Estaduais as disposições aplicáveis ao TCU), revela que a fiscalização não se limita a um controle ex post. Ao contrário, o aprimoramento do controle e a efetividade da atuação dos Tribunais de Contas impõem a possibilidade de intervenção preventiva durante a execução contratual, especialmente quando há fortes indícios de irregularidades aptas a causar dano iminente ao erário.
Fundamentação Constitucional e Legal
- Dispositivos Constitucionais:
- 70, CF/1988: Estabelece o sistema de controle interno e externo da administração pública, com o controle externo exercido pelo Congresso Nacional,
com auxílio do TCU, princípio extensível aos Tribunais de Contas dos Estados e Municípios (art. 75, CF).
- 71, CF/1988: Define as competências do TCU, servindo de paradigma para os demais Tribunais de Contas. A interpretação sistemática desse artigo, em consonância com o dever constitucional de zelar pela boa aplicação dos recursos públicos, confere aos Tribunais de Contas a prerrogativa de atuar preventivamente, inclusive mediante medidas cautelares, para evitar danos ao erário.
2. Dispositivos Infraconstitucionais:
- Lei Orgânica dos Tribunais de Contas Estaduais e Regimentos Internos: Leis orgânicas e regimentos internos frequentemente preveem expressamente a possibilidade de concessão de medidas cautelares, dando suporte normativo à atuação preventiva dos Tribunais de Contas. O Regimento Interno do TCE-SP, por exemplo, contempla hipóteses em que o Relator ou o Tribunal Pleno podem suspender atos administrativos irregulares ou pagamentos potencialmente lesivos.
- Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021): A nova legislação, que gradualmente substitui a Lei nº 8.666/1993, reforça a necessidade de integridade, eficiência, transparência e controle dos processos licitatórios e contratuais. Nos termos do art. 169 da Lei nº 14.133/2021, os Tribunais de Contas mantêm intacta sua competência de fiscalização, podendo recomendar ou determinar medidas preventivas e corretivas. A nova lei também fortalece o diálogo entre os controladores internos e externos, bem como a obrigatoriedade do cumprimento de normas de governança, compliance e gestão de riscos, o que amplia o campo de atuação preventiva das Cortes de Contas.
Ao detectarem indícios de sobrepreço, superfaturamento, direcionamento indevido, inexecução parcial ou outras irregularidades contratuais, os Tribunais de Contas podem, com base na Lei nº 14.133/2021, propor a adoção de correções imediatas. Nessa lógica, a medida cautelar de sustação de pagamentos insere-se no rol de instrumentos aptos a assegurar a boa gestão dos recursos públicos.
3. Teoria dos Poderes Implícitos:
Doutrina e jurisprudência chancelam a tese de que, se a Constituição atribui aos Tribunais de Contas o dever de fiscalizar e zelar pela regular aplicação do erário, decorre daí o poder de adotar meios adequados e céleres para impedir danos iminentes. A medida cautelar torna-se, assim, um instrumento lógico e necessário à consecução da missão constitucional desses órgãos.
Jurisprudência do STF e Precedentes Relevantes
O STF já se manifestou em diversas oportunidades reconhecendo a legitimidade das cautelares emanadas dos Tribunais de Contas, mesmo sem a prévia oitiva das partes, desde que garantido o contraditório e a ampla defesa em momento oportuno. As Suspensões de Segurança nº 5.306/PI e nº 5.505/MT ilustram essa posição, conferindo segurança jurídica às ações preventivas dos órgãos de controle.
A Decisão do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
No âmbito do TCE-SP, a deliberação plenária de 4 de dezembro de 2024 (publicada no Diário Oficial Eletrônico de 6 de dezembro de 2024) estabeleceu um rito detalhado para a adoção de cautelares:
- O Relator, ao constatar indícios de grave lesão ao patrimônio público ou risco de dano irreparável, pode determinar a cessação dos atos irregulares em até 48 horas, sob pena de sanções pecuniárias.
- Nesse mesmo prazo, assegura-se às partes a oportunidade de apresentarem justificativas.
- Caso as justificativas não sejam adequadas ou as determinações não sejam cumpridas, o processo é levado ao Pleno, que pode suspender cautelarmente os pagamentos, prevenindo o aprofundamento dos prejuízos ao erário.
Essa sistemática confere celeridade e efetividade à atuação do TCE, ao mesmo tempo em que respeita o contraditório diferido, conforme a jurisprudência do STF, e observa os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Princípios Norteadores
A solução adotada pelo TCE-SP harmoniza valores fundamentais:
1. Efetividade do Controle Externo:
A cautelar assegura uma resposta ágil a irregularidades, impedindo a consolidação de prejuízos ao erário e reforçando a credibilidade do sistema de controle.
2. Continuidade Contratual e Direitos Fundamentais:
A decisão busca evitar o comprometimento de serviços públicos essenciais, permitindo a adoção de medidas corretivas sem inviabilizar a satisfação de necessidades básicas da população, em linha com a lógica da Lei nº 14.133/2021, que valoriza a eficiência na contratação e a boa prestação de serviços.
Repercussões Jurídicas e Doutrinárias
A concessão de medidas cautelares pelos Tribunais de Contas não pode ser entendida como um “cheque em branco” para a atuação arbitrária. Essas medidas devem ser:
- Proporcionais: Limitadas ao necessário para prevenir o dano ao erário.
- Fundamentadas: Amparadas em evidências e análises técnicas robustas.
- Controláveis e Revisíveis: A posterior ampla defesa e contraditório garantem ao contratado a possibilidade de contestar a decisão, seja no próprio Tribunal de Contas, seja no Poder Judiciário, quando necessário.
A abordagem preventiva reforça a governança pública e contribui para o fortalecimento da cultura de integridade e transparência, princípios centrais da Lei nº 14.133/2021, que incentiva práticas de compliance e gestão de riscos contratuais.
Conclusão
A sustação cautelar de pagamentos pelos Tribunais de Contas destaca-se como um instrumento valioso para dar efetividade ao controle externo, prevenir prejuízos ao erário e promover eficiência na gestão pública. A decisão do TCE-SP, ao regulamentar a atuação cautelar, encontra respaldo na nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), no entendimento do STF e nos ditames constitucionais, garantindo um equilíbrio justo entre a proteção do patrimônio público, o respeito aos direitos das partes envolvidas e a continuidade na prestação dos serviços públicos.
A UVESP, por meio do seu Consultor Jurídico – JOÃO BATISTA COSTA, atenta às inovações normativas e jurisprudenciais, enaltece a importância do diálogo transparente entre os Tribunais de Contas, os gestores públicos e a sociedade civil. Este ambiente participativo é essencial para o aperfeiçoamento da administração pública, a responsabilização dos agentes, a preservação dos recursos públicos e a consolidação de um Estado mais eficiente, justo e comprometido com o bem comum.
Dezembro / 2024
JOÃO BATISTA COSTA / Consultor Jurídico UVESP